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A ARQUITETURA DA
UNIPOLARIDADE

Muniz Ferreira


 

 

 

"Denomino mentira não querer enxergar o que se vê, não querer enxergar
algo do modo como o vemos: não importa se a mentira acontece
na frente ou não de testemunhas. A mentira mais comum é aquela com
que mentimos a nós mesmos; mentir a outros é relativamente uma exceção."

Friedrich Nietzsche,
O Anticristo.

 

Com o desmembramento e posterior dissolução da União Soviética em 1991, o mundo iniciou sua transição da era da bipolaridade leste-oeste para a época da unipolaridade estratégica internacional. O que caracteriza a existência desta unipolaridade não é, a despeito do que sugerem alguns analistas internacionais, a suposta presença de uma única superpotência atômica. Na verdade o que configura o quadro de unipolaridade em que vivemos é a circunstância de que, a superpotência nuclear remanescente é o único Estado do planeta dotado de uma estratégia global, de recursos econômicos, políticos e militares necessários para implementá-la e da experiência cinqüentenária de exercício de uma liderança hegemônica amplamente legitimada e aceita sobre um amplo espectro de aliados internacionais. O que significa que qualquer outra potência que queira nos dias de hoje rivalizar com o colosso norte-americano pela supremacia estratégica global deverá ser capaz de emulá-lo em a) disponibilidade de recursos primários de poder como posição geográfica estratégica, grande contingente populacional, auto-suficiência em alimentos e matérias primas fundamentais tanto do ponto de vista militar quanto industrial; b) abundância de recursos econômicos , expressa em alto nível de produtividade e versatilidade industrial que permita a conversão da produção civil em militar e vice-versa, autonomia tecnológica, capacidade de produção massiva e persistente de equipamentos bélicos e sobretudo, riqueza material ou créditos capazes de serem convertidos em engenhos de combate; c) consenso político interno em favor da formulação de uma estratégia de projeção global, determinação em implementá-la e resistência para arcar com os custos de sua implementação.

Não é sequer necessária muita acuidade analítica para se perceber que nenhum dos demais estados do mundo possui esta combinação de recursos de poder, ou os possui em escala comparável à do império estadunidense. Se considerarmos as duas grandes candidatas ao posto de superpotência , China e Rússia, perceberemos que a primeira ocupa posição favorável diante do item a (boa disponibilidade de recursos primários, auto-suficiência alimentar relativa, determinada pelos baixos níveis de consumo de sua gigantesca população), fraqueja notoriamente ante o segundo item, (produtividade global limitada, dependência tecnológica, versatilidade industrial duvidosa, porém elevado potencial militar estratégico e convencional) e faz de sua condição perante c um enigma a desafiar os sinólogos mais qualificados (Qual o grau de homogeneidade de seus círculos dirigentes?, Qual o nível de adesão ou resistência da sociedade civil aos projetos estratégicos de um Estado autoritário?); já a segunda candidata, conquanto nostálgica diante da condição perdida (nostalgia que lhe suscita, periodicamente lampejos de exibição de poder), apresenta debilidades, ora maiores ora menores, em relação a todos os três fatores de poder indicados. Sucateamento industrial, dependência econômica, ásperas divisões políticas, conflitos étnicos sangrentos e indiferença social são o retrato do país que durante algumas décadas e até um passado próximo, fez sombra às pretensões globalistas dos EEUU e seus aliados ocidentais, entre os quais deve ser incluído o Japão.

Expressão precipitadamente apropriada e precocemente descartada do vocabulário político internacional, a noção de "Nova Ordem Mundial" pretendia caracterizar o desenho estratégico adquirido pelo sistema de poder global após o término da guerra fria. A julgar pelo alcance da ruptura histórica representada pela demissão da superpotência soviética e o triunfo solitário de Washington, o conceito não era totalmente destituído de fundamento. Para bem descrevermos o significado histórico de sua anunciação talvez possamos estabelecer uma analogia entre a maneira como se resolveu a confrontação leste-oeste e a "batalha de Paris" em 1940. Quem olhasse com atenção as expressões dos soldados da Wermacht que marchavam ao longo dos Champs Elisèes possivelmente perceberia, ao lado de um notório sentimento de júbilo (e alguma soberba) dos combatentes alemães, uma oculta perplexidade ante o imprevisto desfecho do que prometia ser a mais mortal de todas as batalhas da história. Esta confusão de sentimentos distintos (júbilo, soberba e perplexidade) deve provocar nos estados a mesma reação que provoca nos seres humanos: o despreparo e a hesitação.

Arrastado a contragosto para os campos de batalha da Segunda Guerra Mundial e convertido em líder do ocidente na seqüência do conflito, os EUA tiveram que exercer desajeitada e despreparadamente o mandato histórico que as esgotadas potências da Europa lhe outorgavam naquele momento. Só conseguiu fazê-lo ao custo de "equívocos" que depois teve de tentar "corrigir"; como fora não haver impedido a expansão da influência soviética (formação do "bloco socialista") e as revoluções de libertação nacional na China e nas antigas possessões coloniais européias da África e da Ásia, numa época em que seu diferencial de poder frente ao resto do mundo, que incluía até o monopólio da tecnologia nuclear, era incomensurável. Esta imaturidade para o exercício da supremacia ajuda a compreender a celeridade com que os Estados Unidos trataram, não só de recolocar de pé os antigos donos do mundo (dilacerados por uma guerra concebida e deflagrada sem qualquer participação norte-americana) mas até mesmo seus inimigos recém derrotados, Alemanha e Japão, sendo estes últimos apressadamente convertidos de objetos de políticas punitivas à condição de peças essenciais da estratégia norte-americana de "contenção do comunismo".

Apreciando retrospectivamente é possível interpretar, na vacilação que demonstrava ante seus novos adversários ( a URSS e os movimentos revolucionários) e na pressa com que esconjurava sua solidão hegemônica, um certo esforço subliminar de renúncia estadunidense ao poder mundial que a história lhe oferecia. Esta renúncia também pode ser aferida da observação de dois princípios básicos da conduta internacional desta potência no imediato pós-guerra: o legalismo e o coletivismo. O legalismo se expressava no apego, ainda que não permanente e nem universal, as disposições do Direito Internacional . O coletivismo corporificava-se no privilégio concedido aos foros multilaterais de tomada de decisão internacional (sistema das Nações Unidas) bem como na formação de blocos, acordos e alianças econômicas, políticas ou militares, dos quais a OTAN ainda constitui uma sobrevivência bem palpável. O essencial a se destacar aqui é que estes exercícios de relativização da hegemonia sustentavam-se sobre dois fatores-chave, 1) num primeiro momento a enorme superioridade econômica dos Estados Unidos sobre seus aliados, considerados tanto individual quanto coletivamente, situação que, a rigor, persistiu até finais dos anos 60; 2) em todos os momentos a existência da bipolaridade leste-oeste, expressa estrategicamente na corrida armamentista, e na competição termonuclear, geradoras da necessidade da construção de sistemas comuns de defesa (tipo OTAN), o que em termos práticos, no contexto dos anos 40-60, significava o oferecimento de abrigo sob o chamado "guarda-chuva nuclear" norte-americano.

Este quadro de liderança inquestionável dos Estados Unidos nos marcos da aliança ocidental iria ser posto em cheque com a emergência de três novos fenômenos desenvolvidos a partir da década de 70: Em primeiro lugar a erosão da supremacia econômica norte-americana frente a seus aliados, que se verificou no contexto da conclusão dos processos de reconstrução econômica destes, provocando uma diminuição relativa, porém perceptível do poderio econômico estadunidense. O desdobramento deste processo, nos anos 80 e 90, com a emersão do bloco econômico europeu e a transformação do Japão em uma grande potência industrial instauraria um quadro de poliarquia econômica internacional, na qual os Estados Unidos teriam que concorrer, em condições muitas vezes desfavoráveis, com seus antigos apêndices econômicos, configurando uma clara situação de competividade e até de rivalidade no interior do bloco ocidental. Em segundo lugar o avanço nas décadas de 60 e 70 dos movimentos de libertação nacional na África e no Sudeste Asiático, os quais, ao revelarem a vulnerabilidade norte-americana nos confrontos bélicos convencionais deflagrados nas regiões periféricas, abalou a crença ocidental na capacidade daquela superpotência em garantir "a segurança e a estabilidade internacionais". Em terceiro lugar a dèbacle da União Soviética e do "bloco socialista" que dissolveu a bipolaridade estratégica que legitimava a hegemonia norte-americana no bloco ocidental e, ao eliminar a ameaça de agressão dos estados aliados pela superpotência rival, dissolveu a imprescindibilidade do recurso ao "guarda chuva nuclear norte-americano", ou seja, da subordinação estratégica dos aliados ocidentais aos Estados Unidos.

Este movimento histórico de enfraquecimento relativo da hegemonia norte-americana produziria nos últimos anos expressões emblemáticas. A conclusão bem sucedida do processo de unificação da Europa Ocidental consolidou e aprofundou a autonomia européia face os Estados Unidos, não apenas na perspectiva econômica mas, significativamente, nos âmbitos político, diplomático e militar. Exemplo maior deste ensaio de individualização estratégica é o projeto da criação de um sistema de defesa europeu, sem a participação estadunidense, que surgiria como uma alternativa à OTAN. Mesmo o subserviente Japão, esboça gestos de autonomia internacional, ensaiando a formação de coalizões com seus vizinhos do Pacífico Oriental, sem os Estados Unidos, ventilando assim o desejo de se deslocar para fora do curral diplomático e estratégico dos EUA. Movimento impulsionado pelo acirramento das diferenças econômicas entre estes outrora sólidos parceiros, evidenciado pela chamada "guerra comercial" nipo-americana e os movimentos simultâneos de estruturação de blocos econômicos distintos: nas américas e no leste asiático. Contribui decisivamente para o desenrolar de todas estas transformações, convém enfatizar, a inexistência de um quadro de bipolaridade, guerra fria ou ameaça de agressão termonuclear aos países do bloco ocidental, o que nestas condições de "relaxamento" para com as preocupações estratégicas, permite que questões de ordem econômica condicionem decisivamente as opções adotadas pelos estados. É, portanto no bojo desta moldura que ganham impulso as tendências, que no interior da aliança ocidental, tensionam no sentido da conversão da inegável poliarquia econômica de hoje, na multipolaridade estratégica de amanhã. É a possibilidade de efetivação desta mudança que constitui, no momento atual, a principal ameaça à perpetuação da hegemonia norte-americana.

A possível reversão da unipolaridade estratégica internacional confronta os Estados Unidos com uma perspectiva crítica. A perda relativa de poder internacional que isto representaria, combinando-se ao processo sistemático de limitação de sua potência econômica a nível global, mergulharia o país num quadro de inquestionável declínio. Perante tais circunstâncias, em uma interessante contradição face os parâmetros que balizaram sua atuação internacional no imediato pós-guerra, não resta aos Estados Unidos dos dias de hoje outra alternativa a não ser atualizar e fortalecer sua posição hegemônica unipolar. No contexto internacional em vigor , a atualização da hegemonia unipolar estadunidense demanda a restauração da percepção de que o mundo ainda é inseguro, porquanto existem novos inimigos e novas forças tendentes à desestabilização do sistema. Ora, num contexto internacional em que notoriamente inexistem inimigos globais, tais ameaças só podem ser representadas pela emergência de potências regionais não confiáveis ou virtualmente hostís ao ocidente na periferia do sistema. "Estados bastardos" ou "estados renegados" na terminologia nem sempre polida dos policy makers norte-americanos, cuja ameaça à estabilidade sistêmica se galvaniza em suas conexões reais ou supostas com o narcotráfico internacional, o tráfico internacional de drogas, o terrorismo. Que possuam pretensões de hegemonia regional ou, o que é mais comum, representem de uma forma ou de outra, obstáculos ao desenvolvimento pleno do processo de globalização econômica. O fato de que tais estados sejam periféricos (seria impensável se estivessem no centro do sistema) reitera uma persistente tradição da história das relações internacionais do pós-Segunda Grande Guerra, a de que, diferentemente do verificado até 1945, os conflitos pela hegemonia global, embora tenham suas matrizes no centro do sistema, tem seu campo de confrontação na periferia. Fato que propiciou que a disputa leste-oeste assumisse a forma de uma guerra fria no hemisfério norte (distensão internacional e dissuasão militar ) e "quente" no hemisfério sul (revoluções e guerras de libertação nacional, intervenções militares dos Estados Unidos e seus aliados).

O esforço em prol do fortalecimento da unipolaridade hegemônica norte-americana passa pelo encorajamento à crença dos aliados ocidentais que os Estados Unidos são a única potência capaz de garantir a estabilidade do sistema em qualquer região do planeta e que a aceitação de sua liderança estratégico militar é essencial. Para este tipo de argumento o elemento básico de persuasão estadunidense é a demonstração de sua capacidade de iniciativa e eficiência bélica na submissão de "estados rebeldes" (os mesmos atores periféricos "bastardos" ou "renegados", citados acima). Distintamente também do que se verificara nas décadas de 40 à 80, a necessidade urgente de tais demonstrações conduz a república imperial americana a se distanciar sem a menor cerimônia dos princípios legalistas e coletivistas de sua política exterior. A ruptura com o legalismo significa para o império desembaraçar-se das interdições antepostas pelo Direito Internacional ao uso da força na resolução de litígios e à intervenção direta nos assuntos internos de estados soberanos. A ruptura com o coletivismo cristaliza-se no desprezo com que as ações imperiais reduzem à insignificância a instância de decisão multilateral mais importante criada pelos participantes da ordem internacional pós 45: a Organização das Nações Unidas. Trata-se, portanto, para as cúpulas de Washington da galvanização efetiva de uma PAX AMERICANA, como a alternativa estadunidense à possibilidade de transformação da poliarquia econômica mundial em um sistema de poder multipolar, em que a única superpotência de nossos dias transformar-se-ia em mais um dos gestores, (quiçá nem mesmo o principal), do sistema internacional.

É sobre este pano de fundo que sugiro sejam interpretadas as ações de policiamento internacional lideradas pelos Estados Unidos no Iraque e na Iugoslávia. No caso do Iraque trata-se de demonstrar a iniciativa e o desprendimento com que o império zela pelos interesses econômicos do conjunto da aliança, ao eliminar às ameaças à livre navegação do Golfo Pérsico e ao garantir o acesso das companhias ocidentais às jazidas petrolíferas da área. No caso da Iugoslávia objetiva-se demonstrar o despojamento com que Washington se dispõe a garantir a estabilidade mesmo na ingrata e prepotente Europa. Tanto num caso como no outro busca-se comprovar a teoria de que apenas `a sombra da superioridade estratégica norte-americana pode o ocidente vislumbrar um futuro de paz e estabilidade. Sendo assim, o teatro de horrores em que se transformaram o Iraque e a Iugoslávia são, na arquitetura estratégica do império norte-americano, apenas laboratórios onde se defende a tese de que o melhor dos mundos é o mundo da Pax Americana. E neste desenho estratégico a escolha de Iraque e da Iugoslávia obedece ao simples desígnio de não desperdiçar ocasiões favoráveis. É óbvio que a situação geopolítica de um e de outro e o impacto da investida de Sadam sobre os campos de petróleo do Kuwait e de Milosevic sobre a guerrilha kosovar contribuíram fortemente para tornar tais oportunidades "imperdíveis". Acresça-se a isto o fato dos países citados serem potências regionais não integradas de imediato ao desenho sistêmico proposto pelo ocidente em seu conjunto. Isto não significa contudo que tanto os que seguem Sadam Hussein, quanto os partidários de Milosevic sejam inimigos natos da aliança ocidental ou alvos privilegiados da hostilidade do império. Regimes aparentemente tão ou mais indigestos para o ocidente como os da Síria e do Sudão são tolerados porquanto não atritam abertamente, pelo menos no momento, com os interesses ocidentais. Portanto, a relevância estratégica de Iugoslávia e Iraque e o impacto provocado pelas ações de seus respectivos governos explicam a razão pelas quais cada um num dado momento tem sido alvo das ações militares da coalizão ocidental, em lugar, por exemplo de Cuba ou Afeganistão, mas não explicam a razão pela qual os Estados Unidos precisam periodicamente organizar ataques desta natureza. Enquanto persistir a necessidade de demonstrações semelhantes, o fato de que os adversários de hoje sejam o Iraque e a Iugoslávia e os de amanhã, por exemplo, a Coréia do Norte e a Líbia depende, sobretudo, de contingências conjunturais. Nesta situação, os argumentos pacifistas, autonomistas, democráticos e humanitários são como as mentiras que Nietzsche estigmatizou, as quais servem para que o império engane a si mesmo antes de procurar enganar o resto do mundo.

Muniz Ferreira é Professor de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal da Bahia, Mestre em Relações Internacionais e Doutorando em História pela Universidade de São Paulo.


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