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RECONHECIMENTO DA DIFERENÇA:
UM PASSO PARA A IGUALDADE

Por Olivia Santana

Coordenadora Nacional da UNEGRO -União de Negros pela Igualdade-
Membro da UBM -União Brasileira de Mulheres

 

Salvador, 2 de março de 2000

Chega 8 de março, Dia Internacional da Mulher. É momento de homenagear a firmeza, a garra , a graça de mulheres de diferentes faces culturais, raciais, dos quatro cantos do mundo. 

Em especial, saudações às mulheres do nosso cantinho soteropolitano. Saudações às mulheres que viraram e viram o jogo da opressão, em nome da liberdade e da autodeterminação em favor dos direitos humanos de todas e de todos. Saudações às mulheres que marcaram a história: Luiza Mahim, símbolo da rebeldia da Revolta dos Malês; Zeferina, grande líder do Quilombo dos Urubus; Maria Quitéria e Joana Angélica, referencias da luta pela Independência da Bahia; Mãe Aninha, Mãe Senhora, e tantas outras ialorixás que herdaram e cuidaram da religião afro descendente; Dina Elza, marco da guerrilha do Araguaia; mulheres e mulheres, anônimas, tantas.

Mas o 8 de março pede mais que as merecidas e necessárias homenagens a mulheres que fizeram e fazem a historia deste país, a maioria à margem dos relatos, das comemorações oficiais . É preciso refletir sobre a luta dos movimentos de mulheres por direitos, meios e oportunidades, marcando o princípio de igualdade, quando a referencia são tanto os privilégios de companheiros homens, quanto denúncias sobre exclusões sofridas por esses, pelos trabalhadores. 

O conceito de igualdade no campo das relações de gênero, em uma concepção feminista ampla, aponta não contra indivíduos, mas contra sistemas de exclusões, como uma economia política pautada pela exploração, um sistema de relações entre homens e mulheres em que se sufoca desejos e potencialidades das mulheres, um sistema de dominação racial que aborta a humanidade das mulheres negras e dos homens negros, sustentando-se por discriminações duras porém sutis que muitas vezes trabalham com a inconsciente cumplicidade das vitimas. 

Vivemos sob a égide do capitalismo em sua fase neo liberal, que de uma forma cada vez mais sofisticada reelabora desigualdades entre os sujeitos e assegura a manutenção de diferenças históricas entre brancos e negros, entre mulheres e homens, reforçadas por uma economia social de expropriaçoes-do valor do trabalho, de heranças culturais, de sentido de naçao, de vivencias de desejos, entre outras.

Focalizando-se Salvador, tem-se seu triste destaque, um dos piores exemplos de desigualdades quanto a gênero e raça, re-alimentadas na classe. Aqui as mulheres correspondem a 53% da população e os negros, a 81% (dados do IBGE, ultimo censo). Entretanto, dados de recente pesquisa (ISPIR-Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial, 1999-dados para 1998 ) dão conta de um mercado de trabalho 8 de profundamente desigual. Apenas 1,9% das mulheres negras são empregadoras, crescendo, para 6,5% , no caso das mulheres não negras. Entre os homens, apenas 3,8% dos negros são empregadores, o que sobe para 12% no caso dos homens não negros-patamar também baixo segundo parâmetros internacionais, mas tais dados sugerem que ser homem e ser branco possibilita ocupar lugares privilegiados na estrutura social.

Aquela pesquisa indica que 25% de mulheres negras soteropolitanas empregadas, exercem a função de trabalhadora doméstica, caindo para 6,9% no caso das não negras. Considerando a problemática do desemprego em Salvador, tem-se que a taxa de desemprego em 1998 era de 27,7% entre os negros e 17,7% entre os não negros. Por sexo/gênero, tem-se na população negra, uma taxa de desemprego de 27,6% para mulheres e de 24% entre os homens. Já entre a população não negra, entre as mulheres aquela proporção cai para 20,3% e entre os homens, para 15,2%. Cerca de 45,5% das mulheres negras ocupadas ganham apenas um salário mínimo. Entre as mulheres não negras, 20,5% estão em tal situação. No plano da escolaridade repetem-se indicadores mais negativos para as mulheres negras: enquanto apenas 36% das mulheres não negras possuem terceiro grau de estudo, já entre as negras, o quadro chega a situação mais extrema, apenas 10,9% tem tal condição.

Os dados apresentados convivem com imagens partidas, de mulheres vendidas como produtos de exportação, chamarizes de turistas, a mulata, a morena jambo, aquela que já nem mais é corpo inteiro nos 'out. doors' da cidade. Hoje ela é apenas um pedaço de corpo, é um seio, um bumbum, e nem pode ser muita negra, amarronzada sim, é um "bom bom". Para as jovens negras, aponta-se como futuro de mobilidade social, o uso de um corpo construído, tirado da sua historia, cortado de sua ancestralidade, pois remodelando-se a raça, perde-se a africanidade, para estar mais de acordo com fetichismos afins ao mercado global: negra sim, mas não retinta, cadeiruda sim, mas não muito gorda, é a mulata de exportação, a morena jambo, a global beleza .

São dados e historias de violências diretas nos espaços doméstico e público, de carências, de não acesso a serviços sociais básicos de saúde e de educação, por exemplo, de sutil corrupção da auto estima e da dignidade pela sedução de uma beleza fabricada, de chicotes na carne do povo mulher na cidade mais negra no mundo, fora da África, na cidade polo de atração de turismo internacional que canta a beleza negra, a musica, a dança do povo negro, passando uma virtual imagem de democracia racial . 

Trançar desigualdades, sem ocultar diferenças, perversidades que fazem da mulher negra a síntese de sistemas de negação de humanidades é grito denuncia a afirmar que em dia internacional das mulheres, entre muitas, entre nós, especial, singular homenagem vai para aquelas que estão por outra historia em se fazendo: herdeiras das que lutaram contra a escravidão, e que hoje estão nas cozinhas, nas vendas de rua, em partidos, em sindicatos, em movimentos de bairro, em grupos autônomos, em tantos lugares, mulheres negras guerreiras que insistem para que Salvador seja de fato um dia, uma cidade de filhos e filhas de Oxum.